Marco Paulo Denucci Di
Spirito
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A doutrina espírita ancora-se na observação
dos fenômenos, especificamente das manifestações espíritas. Por fenômeno deve-se
compreender todo evento que pode ser constatado pelos sentidos humanos.
Segundo Kardec, os Espíritos atestam sua
presença de diversas maneiras. Alguns fenômenos se manifestam por ações
ocultas, que nada apresentam de ostensivo. Outros, contudo, são caracterizados
por uma ação patente, ou por uma manifestação propriamente dita. Há manifestações
da ordem física ou material que se traduzem por fenômenos sensíveis, tais como
ruídos, movimento e deslocamento de objetos. Frequentemente não exprimem informações
inteligíveis. Existem, ainda, manifestações visuais ou aparições de Espíritos.
Esses geralmente constituem fenômenos inteligentes, uma vez que são fontes de
informações portadoras de sentido. Anota Kardec que “toda manifestação que
comporta um sentido, mesmo quando não passa de simples movimento ou ruído; que
acusa certa liberdade de ação; que responde a um pensamento ou obedece a uma
vontade, é uma manifestação inteligente. Existem em todos os graus.” (Revista
Espírita, jan. 1858).
As informações colhidas por intermédio dos
fenômenos espíritas constituem revelações, uma vez que nos situam na linha de
descoberta do que não conhecíamos. (A Gênese, Cap. 1, item 2). Para constituir
uma revelação, essa informação deve dizer respeito às leis da realidade. O que
equivale dizer que somente podem ser consideradas como revelação se estiverem
no caminho da verdade (A Gênese, Cap. 1, item 3).
A ciência moderna permitiu o conhecimento da
realidade por postular o necessário controle por meio dos fatos concretos. Kardec
situa o sistema espírita nessa linha, ao esclarecer que as informações
provindas do fenômeno espiritual podem e devem ser cotejadas com os fatos: “toda
revelação desmentida por fatos deixa de o ser, se for atribuída a Deus, não podendo
Deus mentir, nem se enganar, ela não pode emanar dele: deve ser considerada produto
de uma concepção humana.” (A Gênese, Cap. 1, item 3). Aqui, Kardec frisa que os
conteúdos revelados por via da mediunidade também devem ser sindicados pelo confronto
com os fatos, o que demonstra que a epistemologia espírita vai muito além do
controle universal do ensino dos Espíritos.
Os fenômenos objeto de estudo do
Espiritismo são caracterizados por peculiaridades de destaque, em comparação
com aqueles estudados pelas ciências convencionais (mainstream sciences). Constatou Kardec: “nas ciências naturais,
opera-se sobre a matéria bruta, que se manipula à vontade, tendo-se quase
sempre a certeza de poderem regular-se os efeitos. No Espiritismo, temos que lidar
com inteligências que gozam de liberdade e que a cada instante nos provam não
estar submetidas aos nossos caprichos.” (O Livro dos Médiuns, 1ª Parte, Cap.
III, item 31). Ao contrário do cientista que analisa um objeto inerte, o
estudioso espírita lida com seres inteligentes. Permita-se dizer, nesse
sentido, que o Espiritismo se particulariza por se ocupar em grande parte do
estudo de um “fenômeno que fala”. Tal como se apresenta, o fenômeno espírita é
um desafio que exige uma inovadora abordagem metodológica.
Kardec identificou os meandros do novo
campo que se abria à pesquisa. Percebeu que entre as informações provindas das
fontes mediúnicas, existem aquelas que podem ser diretamente cotejadas com
fatos objetivos, enquanto há relatos que, ante a ausência de elementos
objetivos para a sua verificação, serão melhor compreendidos por meio do contraponto
entre as diversas mensagens que versam sobre o mesmo assunto. Para essa última
hipótese o grande sistematizador teceu considerações em torno do que denominou
de “universalidade do ensino dos Espíritos”. Não se trata propriamente de um
método científico, assim como não o é a chamada “ancianidade dos fenômenos
espíritas” (Revista Espírita, mar. 1860), mas sim de um postulado da epistemologia
espírita em sentido estrito. Na base deste tema encontra-se o princípio da “universalidade
das observações”, de âmbito filosófico (Revista Espírita, mar. 1869), assunto
que requer considerações detidas em trabalho específico.
Em apertada síntese, e para empregar as
palavras de Kardec, são informações derivadas do crivo da universalidade do
ensino dos Espíritos aquelas “instruções idênticas, dadas em todos os
lugares, por médiuns estranhos entre si e que não sofram as mesmas influências,
notoriamente isentos de obsessões e assistidos por Espíritos bons e
esclarecidos.” (Revista Espírita, mar. 1864). A finalidade deste critério é a
de servir como remédio contra opiniões individuais de espíritos (Revista
Espírita, ago. 1867), a de afastar do conjunto dos princípios do Espiritismo sistemas
excêntricos, provenientes da concepção de um indivíduo (Revista Espírita, abr.
1864). Dessa forma, a corroboração de informações por fontes diversas “tem o
valor de uma obra coletiva” (Revista Espírita, abr. 1866). Kardec compreendeu uma
multiplicidade qualitativa entre os Espíritos comunicantes. Os Espíritos, em
virtude da diferença entre as suas capacidades, não poderiam ser tomados
isoladamente como fontes seguras de informações. (O Evangelho Segundo o
Espiritismo, Introdução, item 12).
Não se pode perder de vista que a universalidade
do ensino dos Espíritos possui um âmbito próprio e, portanto, restrito de
aplicação. Ela não deve ser tomada na condição de lupa geral para toda e qualquer
avaliação pelo ângulo do sistema espírita. Ao tratar da revelação espírita,
Kardec esclarece que ela “tem duplo caráter: participa ao mesmo tempo da
revelação divina e da revelação científica.” (A Gênese, Cap. 1, item 13). A
revelação científica relacionada ao objeto de estudo do Espiritismo conta com
mecanismos objetivos de constatação e suas conclusões consolidadas são
incorporadas ao sistema espírita. Lembre-se que “os espíritas apoiam-se em
dados mais positivos, em fatos que eles próprios podem constatar” (Revista
Espírita, jan. 1865), e nesse âmbito a universalidade dos ensinos dos Espíritos
não apresenta a mesma função. Assim, o citado critério da universalidade diz
mais particularmente aos fatos espirituais que os homens não podem perscrutar diretamente
por si mesmos, mas que atualmente podem ser compreendidos por intermédio do
“fenômeno que fala” (A Gênese, Cap. 1, item 13). Por estar relacionada à
revelação de leis que não podem ser mensuradas pelos sentidos e mecanismos humanos,
a finalidade primordial da universalidade dos ensinos dos Espíritos é a de
solucionar conflitos ou contradições entre relatos ou teorias concorrentes
provenientes de fontes comprovadamente mediúnicas (Revista Espírita, mar.
1864). Significa dizer que a universalidade dos ensinos dos Espíritos não
possui o mesmo préstimo quando a informação, o relato ou a teoria são
confirmados pela via da experimentação positiva (O Evangelho Segundo o
Espiritismo, Introdução, item 29). Conclusão que deriva desta é a de que na
medida em que evoluírem os mecanismos científicos de sondagem da realidade,
reduzir-se-á proporcionalmente a participação da universalidade dos ensinos dos
Espíritos. Esse é um aspecto da evolução da epistemologia espírita que precisa ser
explorado.
Outra limitação intrínseca ao critério da universalidade
dos ensinos dos Espíritos é a sua finalidade de servir à consolidação dos princípios
da doutrina, não aos assuntos secundários (Revista Espírita, abr. 1864). Kardec
não tece considerações pormenorizadas sobre o ponto, uma vez que para
determinados setores da epistemologia espírita pendeu mais para o enfoque
pragmático do que para o desdobramento teórico. Mas nesse particular cabe a
distinção entre constatações gerais, nas quais se incluem os princípios da
doutrina espírita, e constatações pontuais, próprias da ciência convencional
que lida com os fenômenos materiais. Quanto mais próximo do controle por parte
do observador, mais o objeto analisado permite a identificação de detalhes. Uma
vez que o controle da universalidade lida com a “objetividade fluida” do
“fenômeno que fala”, não concede ao investigador a mesma potencialidade para obtenção
das mais pontuais e específicas constatações. Nesse campo, deve o estudioso
satisfazer-se com constatações genéricas. É preciso ter em mente, assim, que
não por acaso os princípios da doutrina se encontram relacionados ao crivo da
universalidade. Esse critério naturalmente conduz à apuração de princípios
gerais em virtude da limitação que lhe é inerente. Isso não obsta, por outro
lado, constatações pontuais derivadas do fenômeno espiritual por outros meios,
inclusive pela via da “revelação científica”.
Em suma, são duas as principais limitações
do critério da universalidade dos ensinos dos Espíritos: (i) cinge-se à dedução
dos princípios ou fundamentos das leis que regem a realidade espiritual; (ii)
presta-se a solucionar relatos conflitantes dos espíritos sobre assuntos que
não podem ser diretamente esclarecidos pelos homens mediante confronto com
parâmetros objetivos.
Isso, contudo, não é suficiente para situar
o critério da universalidade do ensino dos Espíritos no conjunto maior da
epistemologia espírita. Há muito mais a ser desenvolvido sobre as pedras angulares
assentadas por Kardec. Entre outros assuntos, tenha-se (a) a relação do
critério em tela com a aplicação da razão, da lógica e do bom-senso (A Gênese,
Cap. 1, itens 50, 57; Revista Espírita, jun. de 1867); (b) os pressupostos
necessários e anteriores à aplicação do critério da universalidade, relativos à
constatação do médium e da mediunidade (= fenômeno). São temas que cabem em
outro estudo.
Se na universalidade dos ensinos dos Espíritos
há um confronto entre informações oriundas de fontes mediúnicas (= corroboração
relatos/relatos), à semelhança do confronto que preside a análise de prova
testemunhal pela via judicial, a epistemologia espírita também permite
confirmações pelo confronto entre informações mediúnicas e fatos (=
corroboração relatos/fatos). Partindo-se do pressuposto de que uma informação
pode ser respaldada por outras fontes, é fácil concluir que para além de conteúdos
obtidos pela via mediúnica atuarem como fatores de corroboração entre si, estes
também podem ser confirmados pelo cotejo com fatos concretos apuráveis na
realidade. A título de parâmetros objetivos que operam na condição de elementos
de corroboração da informação proveniente da mediunidade, tenha-se os seguintes
exemplos:
(i) materializações,
confirmadas em sua realidade por registros fidedignos ou outros meios
científicos. Segundo Kardec, “de todas as manifestações espíritas, as mais
interessantes, sem contestação possível, são aquelas por meio das quais os
Espíritos se tornam visíveis.” (O Livro dos Médiuns, 2ª Parte, Cap. VI, item 100). A materialização de determinado espírito é,
por si, fonte positiva para inúmeras constatações, como a própria existência da
imortalidade da alma. Quando, por meio dessa materialização, o Espírito atesta
a sua superioridade na escala espírita (e.g.,
quando afasta uma doença de cura inalcançável para a ciência humana) e, em
acréscimo, manifesta algumas assertivas, o conteúdo dessas declarações pode e
deve ser levado em consideração, a despeito de não ter passado pelo crivo da universalidade
do ensino dos Espíritos. Esse conteúdo será avaliado, obviamente, por todos os
ângulos da epistemologia espírita, mas não será desacreditado tão-somente em
virtude da ausência de confirmação por parte de determinado número de fontes
mediúnicas. A materialização de objetos (apports),
como a de um jornal antigo, tal qual se deu nas experiências de Scole (SOLOMON,
Grant; SOLOMON, Jane. The
Scole Experiment - Scientific Evidence for Life After Death. Sidney:
Campion Publishing, 2012. Vide, ainda, The Afterlife
Investigations - Edição Brasileira, https://www.youtube.com/watch?v=v_SYq-EFuhE&t=26s), permite a confirmação de fatos e eventos
independentemente da corroboração por parte do crivo da universalidade. A
materialização, por peculiar fenômeno de escrita direta em filme fotográfico,
de um diagrama elétrico apresentado para facilitar a comunicação por
instrumentos, cuja estruturação se mostrou eficaz na esteira da dica
espiritual, tal como verificado nos fenômenos de Scole (KEEN, Montague;
ELLISON, Arthur; FONTANA, David. The
Scole Report. London: Society for Psychical Research, 1999, p. 118), também
dispensa a confirmação por outras fontes espirituais para concluir-se a
respeito da veracidade da revelação. Ou seja, o próprio funcionamento do
mecanismo demonstrou que a comunicação se pautava pela verdade.
(ii) constatações
diretas por aparelhos. Quando, por intermédio de técnicas típicas das
“ciências rígidas” (hard sciences) ou
das ciências oficiais (mainstream sciences),
faz-se possível constatar a realidade espiritual (vide, por exemplo, as pesquisas de Gary Schwartz - https://www.youtube.com/watch?v=zDvjA4u9y14&t=2599s), para as informações objetivas que podem
ser colhidas por intermédio desses mecanismos não parece imprescindível a
atuação da universalidade do ensino dos Espíritos. Os próprios instrumentos de
pesquisa se encarregam de corroborar a informação.
(iii) informações
confirmadas por fontes extracognitivas. A mediunidade permite acessar
informações que estão fora da esfera de cognição do médium ou de participantes
do entorno. Nesses casos, a confirmação da informação pode se dar por uma via
objetiva. As cartas psicografadas por Chico Xavier oferecem grande amostragem a
título de “elementos de corroboração”. Entre as inúmeras comunicações, tenha-se
a carta psicografada para a atriz Nair Belo (https://www.youtube.com/watch?v=JgFyB_NGgk8). É o que se verifica, igualmente, na
linha da pesquisa desenvolvida por Ian Stevenson e Jim Tucker sobre a avaliação
de recordações de vidas passadas (vide,
além dos livros desses autores, o documentário “Histórias de Vidas Passadas” - https://www.youtube.com/watch?v=-ts9NPysm-0). Esses cientistas não se utilizaram da
universalidade dos ensinos dos Espíritos.
(iv) informações
confirmadas pela historiografia especializada. Informações provindas do
fenômeno mediúnico podem aduzir dados passíveis de verificação por meio de
pesquisa histórica especializada que não se encontrava à disposição do público
geral. O desconhecimento dessas informações por parte do médium pode se
apresentar por um conjunto de fatores, entre os quais cabe apontar: (1) a
especificidade da informação; (2) a forma de consolidação da informação; (3) a
indexação ou a apresentação topológica da informação; (4) a presença de
barreiras linguísticas; (5) a dificuldade de acesso à informação; (6) a
necessidade de conhecimentos interdisciplinares para compreender a informação.
Nesses casos, a informação trazida pelo médium é confirmada por elementos
exteriores, que apresentam, em maior ou menor grau, alguma objetividade. O elemento
de corroboração é aquele obtido pelo ângulo da historiografia. Nesse cotejo
entre a informação espiritual e a evidência histórica, a universalidade do
ensino dos Espíritos apresenta importância colateral.
A fim de ilustrar a possibilidade de fatos
e eventos objetivos atuarem na condição de elementos de corroboração da
informação mediúnica, cabe citar um exemplo a partir da psicografia de
Francisco Cândido Xavier. Especificamente, avalia-se a revelação a respeito da
existência da colônia espiritual intitulada Nosso Lar e de uma proeminente
personalidade desta, o Ministro Clarêncio, ambas informações apresentadas na
obra “Nosso Lar”.
Há quem questione a existência da colônia
de Nosso Lar, ou mesmo de qualquer cidade no plano espiritual, sob o pretexto
de um pressuposto “rigor kardequiano”. Note-se, todavia, que as informações em
destaque foram confirmadas por notável fenômeno de materialização obtido por
intermédio de Francisco Peixoto Lins, também conhecido como Peixotinho. Segundo
relatado por testemunhas no documentário “Peixotinho e a Materialização dos
Espíritos” (https://www.youtube.com/watch?v=IMdvY3nVgPE), designadamente no trecho sob o título “A
materialização de Clarêncio”, em específica reunião mediúnica que contou com a
participação deste médium, concretizou-se a manifestação do espírito de
Clarêncio. O depoimento atesta que até mesmo outros Espíritos que já se
encontraram materializados se espantaram com a aparição e manifestaram,
verbalmente, tratar-se do Ministro de Nosso Lar.
Cabe refletir, diante desta evidência, que
consubstancia valioso elemento de corroboração, se o chamado controle universal
do ensino dos Espíritos é pressuposto inafastável, segundo a epistemologia espírita,
para que se possa afirmar acerca da existência do espírito de Clarêncio,
Ministro da colônia espiritual Nosso Lar. Parece evidente que desprezar a
importância da materialização fenomênica, em casos como o presente, na condição
de elemento de corroboração da informação mediúnica, aponta para um apego a
certa ótica que se pretende defender em detrimento da racionalidade que deve
estar na base da epistemologia espírita. É de se questionar como é possível um
rigor, em nome de Kardec, contra os seus próprios ensinamentos. A
materialização de Clarêncio, portanto, é um exemplo que convida para o
necessário desenvolvimento da epistemologia espírita, na esteira da abertura
evolutiva do próprio Espiritismo. Essa é uma tarefa que permitirá a adequada
avaliação das contribuições mediúnicas que se seguiram à sistematização de
Kardec. Lembre-se, em coro com o citado mestre, que para arrancar o joio, não
se deve arrancar o bom grão. (Revista Espírita, abr. 1866).
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