Carlos
Henrique Nagipe Assunção
Bacharel
em História pela Universidade Augusto Motta
Resumo: O presente trabalho tem por objetivo a
avalição dos dados históricos contidos na obra “Há dois mil anos”, psicografo
por Francisco Cândido Xavier. Propõe-se especificamente à busca de dados, em
arquivos remanescentes da Roma Antiga, sobre a historicidade do personagem
protagonista do livro em questão.
“Via-lhe os traços
fisionômicos de homem idoso, sentindo minha alma envolvida na suavidade de sua
presença (...) a generosa entidade se fazia visível a mim dentro de reflexos
luminosos que tinham a forma de uma cruz (...) Levando suas dissertações ao
passado longínquo, afirma ter vivido ao tempo de Jesus, quando então se chamou
Públio [Cornélius] Lentulus.” (explicação de Francisco Cândido Xavier. Do livro
Emmanuel. Ed. FEB, 1997. Pag. 15)
Eis aí Francisco Cândido Xavier (o
famoso Chico Xavier), ainda no início de suas tarefas mediúnicas, fazendo a
devida apresentação daquele que lhe guiaria os passos: o Espírito Emmanuel. Foi
criticado ou ridicularizado pelo simples fato de seu guia ter declarado ser este
personagem romano. Imagina-se o furor causado na época diante de tal revelação!
Se o leitor ainda não entendeu o porquê para tanto, convém mergulhar nas areias
do tempo.
O personagem citado – Públio
Lentulus – já era conhecido e mencionado,
há muitos séculos, nas tradições cristãs por conta da famosa carta que descreve
fisicamente Jesus:
''Eis aqui, enfim, a resposta que com tanta ansiedade esperáveis. Ultimamente apareceu na Judeia um homem de estranho poder, cujo verdadeiro nome é Jesus Cristo, mas a quem o povo chama ‘O Grande Profeta’ e, seus discípulos, ‘O Filho de Deus’. Diariamente contam-se dele grandes prodígios: ressuscita os mortos, cura todas as enfermidades e traz assombrada toda Jerusalém com a sua extraordinária doutrina.
É um homem alto e de majestosa aparência; sua face, ao mesmo tempo severa e doce, inspira respeito e amor a quem a vê. Seu cabelo é da cor do vinho e desce ondulado sobre os ombros; e dividido ao meio, ao estilo nazareno. Sua fronte, pura e altiva, sua cútis pálida e límpida; a boca e o nariz são perfeitos; a barba e abundante e da mesma cor dos cabelos; as mãos, finas e compridas; os braços, de uma graça encantadora; os olhos azuis, plácidos e brilhantes.
É grave, comedido e sóbrio em seus discursos. Repreendendo e condenando, é terrível, instruindo e exortando, sua palavra é doce e acariciadora. Ninguém o viu rir, mas muitos o tem visto chorar. Caminha com os pés descalços e a cabeça descoberta. Vendo-o à distancia, há quem o despreze, mas em sua presença não há quem não estremeça com profundo respeito.
Quantos se acercam dele, dizem haver recebido enormes benefícios, mas há quem o acuse de ser um perigo para Vossa majestade, porque afirma publicamente que os reis e os escravos são todos iguais perante Deus.”(TRICCA, Maria Helena Apócrifos - Os proscritos da Bíblia.Vol.II. Ed. Mercuryo. 1995).
Tal carta teria sido encontrada nos
arquivos do Duque de Cesadini, em Roma e foi impressa pela primeira vez em
1474, em Colônia, por Ludolph the Carthusian em “Life of Christ”. Discussões,
porém, tendem a fazê-la muito mais antiga: há quem diga que é da época do
imperador romano Diocleciano e outros lembram que Tertuliano, um dos Pais da
Igreja Católica, faz menção a ela, no século II d.C. Para complicar ainda mais
a situação, existem pelo menos quatro versões diferentes, o que indica o dedo
viciado humano, modificando certas coisas e detalhes em acordo com seus
interesses próprios.
E a Igreja Católica, como se manifestou
quanto a isto? Encontramos enciclopédias que deixam claro a posição da
instituição:
‘Publius
Lentulus: personnage imaginaire auquel on a attribué une lettre apocryphe
décrivant la personne de Notre Seigneur. Il est a censé avoir été
gouverneur de la Judée, avant Ponce Pilate, et avoir écrit la lettre qui suit au
Sénat romaine. (…) La lettre de Lentulus est une composition apocryphe : la
caractère apocryphe de cette lettre est indubitable. Les copistes
savent trop quel titre donner à son auteur prétendu; ce titre varie dans la
plupart des manuscrits qu’on en connait; les uns l’appelent proconsul, d’autres
gouverneur ou « praeses Hierosolymitanorum », etc. Leur embarras
provient de ce qu’il n’y a jamais eu à Jérusalem ni en Judée de gouverneur de
nom Lentulus. Il existait un « praeses » ou un « proconsul Syriae »,
et un « procurator Iudaeae ». Bien plus, aucun procurateur de Judée
ne c’est appelé Lentulus. (…) D’ailleurs, un Romain n’aurait jamais
pu employer plusieurs des expressions qu’on lit dans la lettre : « propheta
veritatis », « filii hominum » ; ce sont là des hébraïsmes, et le dernier est
emprunté au Ps. XLIV, 3. La dénomination de « Jesus Christus » trahit
aussi une époque postérieure et est empruntée au Nouveau
Testament. Enfin, sans relever d’autres détails, notons que, si elle
avait été écrite par un procurateur de Judée, elle aurait été adressée non au
Sénat, mais à 1’empereur, parce que la Syrie, dont faisait partie la Judée,
était une province impériale, et non une provinnce sénatoriale. (..)
Aucun ancien écrivain ecclésiastique n’a parlé de la lettre de Lentulus,
quoiqu’ils aient si souvent cité les autres écrites apocryphes connus de leur
temps.’ (Dictionnaire de la Bible, F. Vigouroux et al., Letouzay &
Ané Éditeurs, Paris, 1908. No tomo IV, cols. 167-172)
Tradução (livre) : Públio Lêntulo: personagem fictícia,
a quem se atribui uma carta apócrifa que descreve a pessoa de Nosso Senhor.
Supõe-se que [Lêntulo] tivesse sido governador da Judéia antes de Pôncio
Pilatos, e que ele tenha escrito a seguinte carta ao Senado romano. (…) A carta
de Lêntulo é uma composição apócrifa: o seu caráter apócrifo é
indubitável. Os copistas [do documento, a partir dos sécs. XIV-XV
dC] sequer sabiam que título dar ao seu pretenso autor; tal título variava na
maioria dos manuscritos conhecidos; uns o chamam procônsul, outros governador,
ou “praeses Hierosolymitanorum”, etc. Toda essa confusão decorre do
fato de que nunca houve em Jerusalém ou na Judéia nenhum governador chamado
Lêntulo. Houve um “praeses” ou “procônsul Syriae”, bem como um “procurator
Iudaeae”. Mas nenhum procurador da Judéia jamais teve o nome
Lêntulo. (…) Além disso, um romano nunca poderia fazer uso [em sua
correspondência oficial] de muitas das expressões que ocorrem na carta, como
“propheta veritatis”, ou “Filii hominum” – tratam-se de hebraísmos, e o último,
inclusive, é retirado do salmo 44, vers. 3. A expressão “Jesus
Christus” também revela um período [de composição] posterior, sendo tomada do
Novo Testamento. Finalmente, sem levar em conta outros detalhes, pode-se
observar que, se a carta tivesse sido escrita por um procurador da Judéia, não
teria sido dirigida ao Senado, mas sim ao Imperador, porque a Síria, que
incluía a Judéia [como sua esfera de influência] era uma província imperial, e
não uma província senatorial. (…) Nenhum dos antigos escritores eclesiásticos
mencionou a carta de Lêntulo, embora tenham muitas vezes citado os outros
escritos apócrifos, conhecidos em seu tempo.
“Léntulo,
Públio: Hist., personaje histórico ficticio, supuesto gobernador de Judea antes
de Poncio Pilatos. Atribúyesele una carta dirigida al Senado y pueblo
romanos, en la que se da cuenta de la existencia de Jesús y se dan pormenores
de su aspecto exterior y de sus cualidades morales, terminando con la
afirmación que Jesús era “el más hermoso de los hijos de los
hombres”. El origen de esto documento es desconocido; lo cierto es
que fue impreso por primera vez en la Vita Christi de Ludolfo Cartujano (Colonia,
1474), y por segundo vez en la Introducción a las obras de San
Anselmo. Nuremberg, 1491. (Enciclopedia Universal Ilustrada Europeo-Americana, Ed. Espasa-Calpe, Madrid, s/d. No
vol. XXIX, págs. 1611-1612).
Tradução (livre): Lêntulo, Públio: Hist., personagem histórica fictícia, suposto
governador da Judéia antes de Pôncio Pilatos. Atribui-se-lhe uma carta ao
Senado e ao povo romano, que cita a existência de Jesus e que fornece, mesmo,
pormenores acerca de seu aspecto físico e de suas qualidades morais, concluindo
com a afirmação de que Jesus era “o mais formoso dos homens.” A
origem de tal documento é desconhecida; o certo é que foi impresso pela
primeira vez na “Vita Christi” de Ludolfo o Cartuxo (Colônia, 1474), e pela
segunda vez na introdução às obras de Santo Anselmo. Nurembeg, 1491.
“Publius
Lentulus is a fictitious person, said to have been Governor of Judea before
Pontius [Pilate], and to have written the following letter to the Roman Senate
(…) The letter of Lentulus is certainly apocryphal: there never was a Governor
of Jerusalem; no Procurator of Judea is known to have been called Lentulus; a
Roman governor would not have addressed the Senate, but the emperor; a Roman
writer would not have employed the expressions, “prophet of truth”, “sons of
men”, “Jesus Christ”. The former two are Hebrew idioms, the third is
taken from the New Testament. The letter, therefore, shows us a
description of our Lord such as Christian piety conceived him.”( The Catholic Encyclopaedia . http://www.newadvent.org/cathen/09154a.htm. Acessado em
13/01/2014 às 00:40.
Tradução
(livre): Públio Lêntulo é uma personagem
fictícia, supostamente um governador da Judéia antecessor de Pôncio [Pilatos],
e que teria escrito a seguinte carta ao Senado romano referente a Cristo
[segue-se o texto da carta, aqui não reproduzido]. A carta de
Lêntulo é, com certeza, apócrifa: nunca houve um [magistrado com o título de]
Governador de Jerusalém; nenhum procurador da Judéia teve por nome Lêntulo; um
governador romano [da Judéia] não teria escrito ao Senado, mas sim ao
Imperador, e não teria empregado expressões como “profeta da verdade”, “filhos
dos homens”, ou “Jesus Cristo”. As duas primeiras expressões são
hebraísmos; a terceira é tomada do Novo Testamento. A carta,
portanto, mostra-se como uma descrição de Nosso Senhor, tal como a piedade
cristã [posteriormente] a concebeu.
Certamente, valeram-se
dos registros conhecidos da família Cornelius Lentulus, uma das mais conhecidas
e ilustres da Roma Imperial. Poderíamos citar vários, mas só no 1º século d.C.
temos:
- Gnaeus Cornelius Lentulus Gaetulicus e que foi Cônsul no ano 26 d.C.
- Cossus Cornelius Lentulus e que também ocupou o Consulado, mas no ano 25 d.C.
- Publius Cornelius Lentulus Scipio, Senador e Cônsul, cujo filho foi bastante respeitado na época do imperador Nero.
Esta família ocupou cargos
importantes desde os anos mais remotos da República Romana. Há pelo menos uns
cinquenta Cornélius Lentulus conhecidos pelos historiadores atuais. Os citados nominalmente
acima tem carreiras públicas bem conhecidas, o que permitiu-se concluir que nenhum
deles esteve na Judeia do tempo de
Jesus. Logo, a Igreja considerou o assunto bem resolvido.
Mas eis que em meados da década de 30 do
século XX, o jovem médium Xavier, de uma cidade pequenina de Minas Gerais
apresenta como guia o espírito que, repetimos, afirma ter sido este senador em
existência pretérita, que fora Legado Imperial na Judeia e conhecera Jesus, quando de sua
passagem pelo orbe.
A história específica deste
personagem é publicada no livro Há dois
mil anos, recebido pela psicografia em pouco mais de 2 meses. Longe de resolver
a questão, o efeito, obviamente, foi o contrário: a fogueira ardeu mais
intensamente: uns riram, outros vociferaram. Mas o fato indelével é que aquele
jovenzinho de pouquíssimo estudo, com rotina de trabalho intensa, dedicando-se
já à prática do bem na Doutrina Espírita, recebera a saga completa de um mundo
desaparecido há séculos, saga eternizada e reeditada até hoje.
A imprensa da época teceu uma série de comentários e que estão
reproduzidos abaixo:
“Prosseguimos, hoje, na “enquete” em
torno das obras psicografadas por Francisco Cândido Xavier (...) Há
dias um nosso entrevistado declarou, entre outras coisas, que Emanuel (guia
espiritual do “médium” mineiro) “se diz Públio Lêntulo, governador da Judéia no
tempo de Cristo”; e que desse personagem não se vê “nem sombra” naquela época,
segundo dados de que dispunha.
O interesse que nos leva a abordar
esse assunto histórico é o esclarecimento que devemos aos nossos leitores, que
vêm acompanhando a presente “enquete”. E é por isso que, a
propósito, fomos ouvir o sr. Silvano Cintra de Mello, cujas declarações
reproduzimos a seguir.
Perguntamos inicialmente a S[ua]
S[enhoria] [o sr. Cintra de Mello] se Emanuel, guia de Chico Xavier, disse ou
não ter sido governador da Judéia quando fora [outrora] Públio Lêntulo.” (Jornal
da Noite – trechos da reportagem de 9 de agosto de 1944)
Prossegue o Jornal com
a resposta de Cintra Mello, querendo esclarecer os fatos:
“(...)De fato, na psicografia ‘Há Dois Mil Anos’,
Lêntulo não é apontado como ‘governador da Judéia’, porque já se sabia, na
época (1938) que não tinha havido um governador da Judéia de nome
Lêntulo. Tinha-se que
‘arranjar’ um motivo qualquer para que a dita personagem estivesse lá, e o
motivo foi uma ‘legação’ imperial.” (Jornal da Noite – trechos da reportagem de 9 de agosto de 1944)
Em linhas gerais,
podemos dizer que as críticas são as seguintes:
- Não haveria sentido algum no fato de um senador romano permanecer tantos anos em uma província;
- Não compreendem o cargo ocupado por Públio como Legado Imperial, ainda mais quando se trata também de conciliar a missão com interesses particulares;
- O Prefeito da Judeia (Pilatos) era um equestre (a segunda ordem mais importante de Roma, abaixo apenas da senatorial). Ora, Públio Lentulus era um senador. Logo, era superior ao primeiro. Seguindo o raciocínio, Públio faria cair por terra a autoridade de Pilatos, ou seja, o que quer decidisse deveria ser acatado pelo Prefeito;
- O fato de Públio estar recebendo subsídios do Estado, o que, no entender dos críticos, seria feito apenas para adquirir honra , não havendo nenhum tipo de pagamento.
Destacamos os
trechos do livro que serviram de base para algumas das críticas assinaladas, a
fim de que o leitor entenda de maneira mais clara a situação:
“Poderias descansar um pouco na
Palestina(...) Poderíamos harmonizar
vários problemas do nosso interesse e de nossas funções(...) não me seria
difícil obter dispensa do Imperador dos teus trabalhos no Senado, de modo a que
continuasses recebendo os subsídios do Estado, enquanto permaneceres na
Judeia”. – Flamínio Severus em sugestão
ao senador Públio Lentulus.
“(...)havia servido um ano na
administração de Esmirna, de modo a integrar-se, da melhor maneira, no
mecanismo do trabalhos do Estado, mas não conhecia Jerusalém, onde o esperavam
como legado do Imperador, para a solução de inúmeros problemas
administrativos(...)” – Pensamento de Públio Lentulus sobre sua situação.
“(...)se a decisão dependesse tão somente
de mim, fundamentá-la-ia em nossos códigos judiciários(...)” – Públio, em
resposta Pilatos, durante o processo de Jesus. (XAVIER, Francisco Cândido Há dois mil anos, Federação Espírita Brasileira 47º ed.)
Na verdade, nos
perguntamos o porquê de certas críticas, cuja a lógica parece saída de um míope
em História que quer julgar, de má-fé, os fatos em seu próprio interesse,
desvirtuando-os da verdade, com o objetivo de fazer confusão. Ainda mais quando
se acusa o respeitado médium de charlatão, mentiroso, um enganador que lia
bastante e plagiou tudo o que escrevera. Por si só, isso já seria um fenômeno,
levando-se em consideração o conjunto da obra, que já ultrapassa a marca de 400
livros, isso sem levar em consideração as inúmeras mensagens de espíritos a
entes queridos que o procuravam sempre. Se a humanidade quiser buscar um
entendimento para o fenômeno “Chico Xavier” deve ir noutros caminhos, porque
creditá-lo de enganador é explicação bastante insignificante e insuficiente
para responder a todos os fatos.
Fazendo nossas
pesquisas corriqueiras, encontramos explicações importantes para a política
administrativa romana do Império. Entre os magistrados (altos funcionários
públicos) das vastas regiões do mundo antigo dominadas por Roma (províncias),
havia dois tipos:
- Os menores (menos importantes);
- Os maiores (mais importantes, entre os quais se incluem os Proconsules, os Propretores e etc). Estudando os diversos cargos provinciais maiores, um nos chamou a atenção em particular:
“Legados (legati) – Eram
magistraturas que acompanhavam o governo nas províncias, os Proconsules e
Propretores, na qualidade de seus lugar-tenentes (...) Além de coadjuvarem e
substituírem os governadores das províncias no impedimento destes, eram os
legados que julgavam as causas particulares, porque as públicas eram da alçada
dos Proconsules e Propretores.
Algumas
vezes foram nomeados os legados para governarem províncias pacificadas,
tornando-se tão honrosa esta magistratura, que muitos cidadãos consulares e
pretórios não se dedignaram [submeter-se
a algo] de a pretender em Roma.
Os senadores que tinham negócios
particulares nas províncias, pediam algumas vezes o lugar de legados
honorários, para melhor serem atendidos e respeitados em terras estranhas; a
isto se chamava legação livre. (MARRECAS, Manuel Martiniano Antiguidades romanas Imp. Nacional,
LISBOA. 1872. pag. 68. Adendo explicativo nosso).
“Os senadores, que tinham algum
negócio particular (por causa dos quais se julgava não estarem ausentes da
República), algumas vezes alcançavam do Senado uma Legação livre, isto é,
decoravam-se com o nome e insígnias de Legado, para d’esta forma serem mais
acatados por povos estrangeiros, e para poderem concluir com mais facilidade
seus negócios.”(NIEMPOORT Usos e costumes
dos romanos. Ed. José Rodrigues. 1865. pag. 123 e 124)
A conclusão é óbvia a
qualquer um, sem a necessidade de nos alongarmos tanto. Públio Lentulus foi
designado para um cargo especial e de interesse particular, tal qual havia dito
Cintra de Mello em 1944. Fica evidente também o porquê de Públio Lentulus não
intervir no processo de Jesus, pois este era um caso público. Seus poderes
limitam-se aos casos privados. Não que Pilatos lhe fosse igual, mas eram
funções diferentes. Mais interessante
ainda é o fato de certos cargos provinciais serem mais honrosos, a ponto de não
pretenderem nada em Roma, o que justifica os anos passados pelo senador em
terras judaicas. Convém ainda considerar um outro fato importante: nos dias
turbulentos do imperador Calígula, um
familiar seu, Gneius Cornelius Lentulus Gaetulicus, fora executado a mando do próprio imperador. E quantos
Cornelius não teriam sofrido perseguições na capital imperial no mesmo período!
Ora, não seria melhor manter-se à distância?
Convém ainda destacar a
questão referente ao subsídio, a fim de
que refutemos todas as críticas lançadas. Públio recebia ou não pela missão de
seu cargo? A trecho abaixo poderá fazer cair por terra qualquer dúvida:
“Tudo valia dinheiro. Os postos
militares que garantiam a polícia dos campos e ali preenchiam os cargos
administrativos faziam os povoados votar-lhes gratificações. (...) Um romano
enriquecia em parte à custa dos cofres públicos(...) (ARIÈS, Philipe e DUBY,
Geordes História da vida privada – Do
Império Romano ao ano mil. Companhia De Bolso, SP. 2012. pag. 95-96)
“Ninguém servia o Estado, porém dele
se servia.”(Id.pag.97)
Há outro ponto sobre o qual
devemos também nos debruçar. Emmanuel informa no livro que era senador romano
já no ano 31 d.C., quando tinha por volta de 29 ou 30 anos de idade. A crítica também questiona esse trecho,
afirmando ser impossível, pois que o personagem não tinha a idade mínima para
ingressar nesta instituição. Indagamos, mais uma vez, sobre a fonte que
permitiria tal indagação, pois, de acordo com o nosso conhecimento, não há
nenhum erro no fato. Vejamos as condições para fazer parte do Senado:
“ 1 – Que tivesse servido em algum
cargo, pelo menos a questura, para o qual se exigia a idade mínima de 25, sendo
por isso indispensável que o candidato tivesse 26 anos.
2 – Renda mínima de 800,000 sestércios, que no tempo de Augusto foi
elevado a 1.200,000 (...).
3 – Que tivesse comportamento irrepreensível.” (MARRECAS, Manuel
Martiniano Antiguidades romanas Imp.
Nacional, LISBOA. 1872. pag. 43)
“ Em terceiro lugar. Atendeu-se ao
censo, que nos tempos mais remotos parece ter sido pequeno, mas florescendo a
República foi de 800 asses. Porém, Augusto ordenou que o censo dos senadores
fosse de 1.200 asses. Em quarto lugar, se atendeu à idade, mas qual esta fosse,
não se sabe ao certo, é porém natural que exigisse a de 25 anos.” (NIEMPOORT Usos e costumes dos romanos. Ed. José
Rodrigues. 1865. Pag. 18)
Assim, a conclusão, sem
delongas, é óbvia: Públio, com seus 30 anos de idade, poderia sim ter sido
senador romano, não havendo motivos para críticas em torno disso.
Apesar destas
conclusões positivas e que nos levam a considerar com apreço o romance de Chico
Xavier, continuávamos a nos perguntar se tal personagem não existira de fato
para a História, se não nos chegara nenhum registro de tal patrício do primeiro
século da Era Cristã. À princípio,
debruçamo-nos sobre as biografias dos Cornélius Lentulus conhecidos no 1º
século. Nenhum deles, repetimos, adequa-se
ao perfil apontando em “Há dois mil
anos”. Mas posteriormente descobrimos as chamadas “Prosopographia Imperii
Romani”. Pelo menos duas obras foram lançadas com este nome: uma de Elimar Klebs, Paul von Rohden e Hermann
Dessau, de 1897. Outra, de Edmund Groag
e Artur Stein, igualmente do século XIX. Ambas em Latim. Os livros
reconstituem carreiras políticas dos romanos conhecidos nos 3 primeiros séculos
da era cristã. Encontramos todos os Cornelius conhecidos, mas nenhum senador
chamado apenas Públio Cornelius Lentulus, vivendo no primeiro século d.C.
Concluímos,
neste momento, que os estudiosos católicos do pretérito se utilizaram das “Prosopographias”
para achar qualquer indício do senador
que escrevera a carta acerca da aparência de Jesus. Possivelmente, procuraram
também na lista dos cônsules romanos. Eram dois a ocuparem simultaneamente os cargos
tão honrosos. A lista (Fasti Consulari)
está no Museu Capitolino, em Roma. Vários Cornelius são mencionados nela, mas
nenhum Publio Cornelius Lentulus no período em questão. No entanto, descobrimos
uma mais específica, contendo também os Cônsules suffectus, que nada mais eram do que cônsules substitutos, em caso
de morte ou renúncia dos oficiais. Ali, sim,
no ano 27 d.C. há citação a um nome que nos chamou a atenção:
- 1 Cônsul suffectus – Publius Cornelius Lentulus
- 2 Cônsul suffectus – Sallustius Crispus Passienus
Portanto, podemos
afirmar, com muita propriedade, que existiu um Públio Cornelius Lentulus,
patrício romano que estava iniciando sua carreira política no governo do
imperador Tibério.
Quanto ao primeiro, o foco da nossa investigação, nenhuma informação biográfica.
O segundo era jovem ainda, tendo somente casado anos depois de ter ocupado o
cargo. Logo concluímos que haveria uma fonte primária e que era preciso chegar
a esta. Assim, livros do séculos XVI foram consultados, livros dos séculos XVIII,
também.
Mas foi na seguinte obra do século XIX que começamos a encontrar a
resposta: FASTI CONSULARES INDE A CAESARIS NECE UESQUE AD IMPERIUM DIOCLETIANI (obra em latim, de Iosephus Klein, de 1881)
No livro,o autor
destaca o Cônsul suffectus, fazendo uma pequena explicação que, a nosso ver,
foi o motivo deste indivíduo ter sido ignorado pela História. Está assinalado da seguinte maneira os nomes
de ambos, na página 26:
- P. [Cornelius] Le[ntulus?]
- C. Sall[ustius?]
Os Acta ou Fasti Arvalium são as atas de registro de uma
fraternidade sacerdotal da antiga religião romana dedicada à Dea Dia, deusa dos
bosques e da fertilidade do solo, por vezes identificada com Ceres. Seu Templo
ficava na margem direita do rio Tibre e todo mês de maio ocorria a Ambarvalia,
festival em sua homenagem. Confira-se as seguintes imagens:
Fragmentos dos Fasti Arvalium – La Magliana, Roma (https://hcmc.uvic.ca/grs/mdb/search.php?q=&page=541 . Acessado em 15/01/2014 às 15:13)
Os registros dos sacrifícios ficavam grafados em placas de mármore nas
paredes do Templo e em 1866-1869 começaram a ser descobertos por Wilhelm
Henzen. Posteriormente, o material foi reunido no livro ACTA FRATRUM ARVALIUM,
de Guil. Henzen, publicado em Latim, em Berlim, no ano de 1874. Na página 457,
acha-se assim explicado o personagem em
questão:
“p. [cornelius] le[ntulus?]
cos.suf.cum c sall[ustio] a. 27 fasti mag: sed non constat, num re vera
Lentulus quidam ignotus indicatus fuerit.”
Tradução (livre): p. [cornelius] le[ntulus?] cônsul suffectus com c sall[ustio] a. 27
fasti mag: mas não é claro saber se, na verdade, Lentulus existiu tal como
declarado.
Para os que não estão
familiarizados com a convenção da nomenclatura da Roma Antiga, são necessárias algumas
explicações.
Os nome do indivíduo
romano era constituído de 3 elementos: O
prenome, o nome da gens (ou seja, da
tribo a que pertenciam, sendo este o mais valorizado, o verdadeiro nome) e o cognonem. Por vezes, aparece também o agnomem.
Alguns perguntarão como uma
simples abreviatura como “P.” levou a conclusão de que se trata de um “Públio”.
Não poderia ser outro nome? Não! De acordo com a convenção da época seria mesmo
esse nome. Na verdade, era comum o prenome figurar, nos monumentos públicos,
abreviado. Os exemplos abaixo, todos Publius da Antiga Roma, deixam isso claro:
Inscrição honorífica a Públio Élio Coerano – Museus do Vaticano (http://ancientrome.ru/art/artworken/img.htm?id=3567 . Acessado em 15/01/2014 `as 16:39)
Monumento funerário da família de Públio Géssio – I século a.C.(http://www.ancient-egypt.co.uk/boston/pages/boston_03_2006%201682.htm .Acessado em 15/01/2014 às 16:03)
Monumento da família de Públio Géssio – detalhe (http://www.vroma.org/images/raia_images/tombstone_gessius5.jpg . Acessado em 15/01/2014 às 16:30)
Urna funerária de Públio Nónio Zethus – Museus da Vaticano (http://www.vroma.org/images/raia_images/tomb_Zethus2.jpg . Acessado em 15/01/2014 às 18:34)
Busto de Públio Cornélio Cipião – Vila Borghese – Roma (http://www.flickr.com/photos/quetzalcoatl1/9368543717/ . Acessado em 13/01/2014 às 20:38)
Em seguida, está escrito [cornelius], o que indica que foi acrescentado o nome gentílico,
por tratar-se do correto. O uso de nomes
entre colchetes é muito usado, no livro, para vários indivíduos cujos nomes
estão fragmentados.
Por fim, há o [Le?]. Não
encontramos nenhum ramo dos Cornelius cujas inciais “Le” fossem de qualquer
outro que não dos Lentulus. Na
verdade, Lentulus era, no primeiro
século d.C., um cognomem exclusivo desta gens
e de nenhuma outra. Alguns poderão até mesmo querer sugerir outros cognomes de famílias importantes da
época, mas convém observar algumas questões:
- O organizador do “Fasti Arvalium” não renega a fonte histórica, cujo conteúdo em questão aparece fragmentado. Fazer isso seria um contra-senso, uma desvalorização de sua própria obra. Ao pôr na nota de rodapé: “mas não é claro saber se, na verdade, Lentulus existiu tal como declarado” refere-se ao fato de não haver nenhum outro registro da vida política deste personagem que não seja o único citado. Mas isto, de maneira alguma, quer dizer que esta carreira inexistiu. Demonstra apenas que ela não chegou a nós. Forçoso é reconhecer que na parede de um templo romano foi grafado o nome de um Cônsul suffectus chamado Públio Cornelius Lentulus e que ninguém, até onde pudemos pesquisar, prestou a atenção neste homem.
- A época está repleta de Cornelius Lentulus que ocuparam o Consulado. No ano 24, Publius Cornelius Lentulus Scipio foi eleito para o cargo. Em 25, foi a vez de Cossus Cornelius Lentulus. Em 26, veio Cneius Cornelius Lentulus Getulicus. É lógico pensar que, pela fama e poder da gens, um outro membro seu tenha ocupado o Consulado em 27 d.C.
- O autor da obra complementa, afirmando, que este Publius é um Cornelius. Se ele tivesse qualquer outra família como potencialmente provável, ou ele deixaria clara a dúvida, assinalando a questão, ou simplesmente deixaria em branco, o que é comum em vários trechos do ACTA, o livro lançado no século XIX, com relação a outros indivíduos.
Era muito comum que os patrícios ocupassem o cargo de Cônsul suffectus
até os 30 anos de idade. Mais do que isso: era uma maneira de possibilitar, de
permitir que o indivíduo exercesse o cargo de Legado nas províncias da Ásia e
da África. A necessidade de ter indivíduos para o preenchimentos de legados
provinciais, levou Augusto inclusive a reformar o Consulado suffectus.
Muitos poderão argumentar que a idade mínima para o função era a de
quarenta e três anos. Entretanto, tal era o costume da época republicana e o
período em questão é o imperial. Aí, essa pré-condição na prática, foi caindo por
terra, levando-se em consideração que muitos imperadores se autodenominavam ou
indicavam protegidos seus para o cargo bem antes do tempo permitido. Assim, o
próprio Otávio Augusto foi Cônsul aos 19 anos. Caio César ocupou-o por volta
dos 20 anos de idade. Marcus Furius Camilo tinha por volta de trinta e três
primaveras quando foi nomeado para o ilustre cargo, no ano 8 d.C. O próprio
companheiro de Públio Cornélio Lentulus,
o suffectus Sallustius, nem havia casado
ainda, conforme afirmamos anteriormente. Isso para citar somente alguns
exemplos. Depois de terminado o mandato, o indivíduo tornava-se membro do
Senado Romano, se estivesse em acordo com as condições já explicitadas.
Logo, todo o conjunto se liga: O Públio Lentulus (do ‘Há dois mil anos’) foi esse suffectus, o que lhe possibilitou ser
nomeado senador e, posteriormente, Legado
de honra na província asiática, de acordo com interesses particulares,
inclusive. É impossível não notar como
as informações, a histórica e a psicografada, se completam plenamente,
apresentando um contexto de notável verossimilhança.
Para concluirmos a nossa abordagem, falaremos agora do motivo inicial
que nos levou a pesquisa: existiu mesmo uma carta de Públio Lentulus
descrevendo Jesus? A obra “Há dois mil anos” fala algo sobre a questão? Vejamos
o seguinte trecho do livro em questão:
“Escreveu-lhe (Públio Lentulus) longa
carta, em suplemento, com vistas ao Senado Romano, sobre a personalidade de
Jesus-Cristo, encarando-o
serenamente, sob o estrito ponto de vista humano sem nenhum arrebatamento
sentimental.”( 47º edição. pág. 103 - Destaques nossos)
Conhecendo as versões diversas e levando em consideração o que o próprio
Emmanuel afirmou acima, é óbvio concluir que existiu sim uma carta (que devia
fazer parte de uma série de outras descrevendo possíveis indivíduos com
potencial ou não para insuflar rebeliões). Ademais, ela (e suas várias versões)
está cheia de termos que jamais um senador usaria. Ora, frases como: “um homem,
que vive de grandes virtudes” “em verdade, a cada dia ouve-se coisas
maravilhosas sobre este Jesus”, “Diz-se que um tal homem nunca foi visto por
estas paragens”, “é o mais belo homem que se possa imaginar, muito semelhante a
sua mãe”, “Filho de Deus”, obviamente foram acréscimos posteriores, conforme já
dissemos.
Basta prestarmos a atenção na fala do próprio autor para percebermos
que, de maneira bastante sutil, ele vai ao encontro do nosso pensamento sobre a
questão. Aqui, o autor
espiritual apresenta uma explicação verossímil que responde às principais
críticas lançadas contra as versões da epístola que chegaram até nós. A exata
pertinência do comentário de Emmanuel em destaque demonstra conhecimento
específico digno de um especialista na Epístola Lentulus.
Ainda não se sabe nada
acerca da vida deste indivíduo citado nos Acta
Arvalium, o que não significa que, no futuro, não surjam novidades neste
sentido. Muitos ainda afirmam que não existiu nenhum Publio Lentulus em Pompeia, cidade soterrada pelo Vesúvio, quando
do erupção de 79 d.C. Ora, mas quem disse que as escavações estão completas?
Pelo menos, 1/3 da cidade continua aguardando, enterrada, os trabalhos
arqueológicos. Villas e até mesmo
restos mortais humanos jazem ocultos no subsolo da atual Campânia. Quem pode
garantir que, futuramente, não tenhamos novidades neste sentido? Mais tolo
ainda é afirmar que, entre a lista dos senadores da Roma Antiga, não existe tal
figura. Ora, onde está a tal lista? Ela não existe! Em 1200 anos de História,
milhares ocuparam esse cargo e não conhecemos senão uns poucos.
Aguardemos o tempo!
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